segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Fórum Social Mundial 2009: O continente mais cristão é aquele que menos partilha o pão

O continente mais cristão é aquele que menos partilha o pão
João Paulo II foi citado numa noite em que a palavra socialismo rimou com eficiência e contra o imperialismo. Cinco presidentes latino-americanos estiveram no Fórum

A América Latina vive um "paradoxo", para o Presidente equatoriano Rafael Correa: "Ser o continente mais cristão e ter a maior exploração [de trabalhadores] no mundo." E ilustrou: "Jesus Cristo partilhou o pão, mas este continente não partilha o pão."
A noite de quinta-feira (já madrugada de sexta-feira em Portugal) era de festa, muita festa, um comício travestido de conferência. No Hangar – Centro de Convenções de Belém, no Pará, os participantes do Fórum Social Mundial acolheram em euforia cinco presidentes latino-americanos: Evo Morales, da Bolívia, Fernando Lugo, do Paraguai, Hugo Chávez, da Venezuela, Rafael Correa, do Equador, e o anfitrião Lula da Silva.
A palavra socialismo foi das mais ouvidas na noite e rimou com justiça e "muito mais eficiência", como disse o mesmo Correa. Que explicou então as suas ideias com as palavras de João Paulo II: "O trabalho humano tem de estar acima da economia", como defendeu o Papa polaco. "A economia tem de ser centrada no trabalho humano e não o trabalho humano centrado na economia", sublinhou.
Já Lula da Silva acabaria por recordar o teólogo Leonardo Boff, para dizer que "está provado que Deus escreve crise por linhas tortas. Agora, a crise é deles, não é nossa", é dos países ricos, disse o Presidente brasileiro. "Durante 20 anos venderam-nos a ideia que o Estado não prestava, o deus-mercado resolvia tudo. Agora ele quebrou." Mas Lula entende que esta crise "é também uma oportunidade para mudar a política". Há 100 mil participantes do Fórum que entendem o mesmo.
Semelhanças entre África e Américas
Missionários da Consolata levam "retratos da sabedoria" de povos da Colômbia, Brasil e Moçambique ao fórum, "como garantia de sobrevivência do planeta e da humanidade"

"Ainda não encontrei nada neste fórum que não esteja enunciado neste livro, «Biosofia e Bioesfera Xirima»", Afirmou José Frizzi a mais de meia centena de participantes no painel que os Missionários da Consolata promoveram no fórum. Há 38 anos em Maúa, Niassa, Moçambique o missionário apresentou diversos volumes sobre costumes, cultura e religião do povo makua.
José Frizzi sublinhou a importância do conhecimento da língua e interrogou: "Com quem está a dialogar quem transmite a cultura numa língua estrangeira?". Para acrescentar: "É necessário transmiti-la na língua materna". O missionário criou o Centro de Cultura Makua, começando pelo estudo aprofundado da língua xirima. "Sente-se a necessidade de democratizar a palavra", em vista de "um futuro eco e eticamente mais consistente".
Os dois termos escolhidos para título da obra que apresentou: "biosofia e biosesfera", sublinham "o valor cardeal da vida na etnia makua", uma das poucas tribos em que predomina o maternalismo. O mito central da cultura makua ensina que "tudo vem do útero materno de Deus", explicou o missionário.
Em seguida o missionário mostrou como o makua aponta "critérios de diálogo cultural, para valorizar a alteridade". E explicou com o exemplo do camaleão, como paradigma da alteridade. Este animal tem uma simbologia diferente da nossa na cultura makua. E explicou: "O camaleão sai de casa lenta e cautamente para a descoberta do outro". Em seguida "vira os olhos em todas as direcções para conhecer o mundo. Precisa de espaço".
Pouco a pouco o camaleão "muda de cor e assume a cor do ambiente que o rodeia". E explica: "Adapta-se ao ambiente, mas garante a sua identidade". E continuou a apresentar a lição que a cultura consegue colher da maneira de estar deste pequeno animal. A terminar reproduziu algumas perguntas que a cultura makua faz, tendo sempre a água como resposta. "A verdadeira riqueza de Deus é a água".
O painel debateu ainda a cultura e vida dos povos da Raposa Serra do Sol, de Roraima, Brasil, assim como o povo Nasa da Colômbia. Tratou-se de um painel muito concorrido, numa sala da Universidade Federal, e que suscitou muito interesse na assembleia, composta por ouvintes de várias idades e proveniências.
Chavez foi vedeta entre presidentes
Sindicalistas convidam quatro presidentes para o fórum

Teceram louvores ao socialismo contra o imperialismo Rafael Correa, do Equador, Fernando Lugo, do Paraguai, Evo Morales, da Bolívia, e Hugo Chavez, da Venezuela. A presença dos quatro presidentes latino-americanos no fórum de Belém, pela primeira vez, foi um espectáculo de música e cor. Aliás o próprio discurso de cada um foi nessa linha, em que Hugo Chavez é mestre.
O fórum é um evento vedado aos políticos como tal, mas onde podem estar presentes como qualquer outro cidadão. Convidados pelo movimento sindical brasileiro, os quatro presidentes aproveitaram bem a circunstância que lhes foi oferecida, para desenvolver o seu pensamento sobre a integração popular no caminho da América Latina.
No uso da palavra todos os presidentes se apoderaram, de algum modo, dos temas e lutas próprios do fórum social, como a luta contra a escravidão, neocolonialismo, contra a pobreza, a luta das mulheres latino-americanas. De certo modo verifica-se uma luta pela apropriação de temas que são património dos nove fóruns já realizados.
Aliás, o governo brasileiro está a aproveitar o fórum para transmitir aos participantes uma imagem positiva do seu trabalho, procurando justificar causas que são polémicas e Contestadas pró diversos grupos. Não faltam cartazes bem elucidativos desta política.
No final do dia, 29 de Janeiro, o presidente Lula juntou à sua volta os outros quatro presidentes, num encontro com o público, para mais uma vez apregoar a solidariedade internacional dos povos latino-americanos.
Outra economia é possível
Três pavilhões e vários standes na margem esquerda do rio que atravessa o recinto do fórum albergam dezenas de lojas de comércio équo, sob a designação de economia solidária

Francisco Cardoso, de 73 anos, com a Beatriz estão à frente do stande de uma associação da ilha de São Mateus e Cafezal, no Pará, junto da ilha de Marajó. Os associados fabricam objectos de barro, que têm "as sementes de árvores deixadas pela maré. "A Amazónia está em grande sofrimento", explica Francisco. "Os barcos estão a destruir, com a força das ondas, árvores e terreno, sobretudo a argila".A associação Agro-Extrativista Natureza e Arte foi fundada há três anos, para promover a inclusão social. Está voltada para as pessoas idosas e, sobretudo, para adolescentes. "São jovens que se encontram pelas esquinas e damos-lhe ocupação", explica Francisco, reeleito coordenador da associação. "Assim evitamos que vão para a criminalidade".A associação não tem fins lucrativos. Fazem peças de barro a partir de "sementes de jupati, pikiá, maniuera, pitaica e andiroba". O trabalho não é pago. Em cada cinco peças que confeccionam, os artistas levam três para vender. As outras duas ficam para a associação, que as coloca no mercado e no museu Emílio Guedes. A associação conta 240 famílias associadas, que pagam uma jóia mensal de três reais.
Consolata apresenta actividades no fórum
Mais de cem mil participantes percorrem os espaços das Universidades Federal e Agrária de Belém. São milhares de stands com as mais variadas propostas de causas e lutas
Na área 17, na Universidade Federal da Amazónia, um punhado de missionários e missionárias da Consolata aborda os passantes, responde a interpelações e distribui desdobráveis e cdês. O projecto da água, no Quénia, e a escola de artes, em Moçambique são as actividades que "maior interesse despertam", explica António Fernandes, missionário da Consolata, o promotor da participação no fórum. São seis dezenas entre missionários, missionárias e leigos.António Fernandes, conselheiro da Consolata para as Américas, explica que esta participação pretende "dar a conhecer o trabalho dos missionários e missionárias com os diversos povos". As visitas ao stand têm sido muitas, com um bom acolhimento. Os missionários estão a "mostrar um caminho de interacção com os povos". São projectos interessantes e solidários. "Ainda há pouco estive com três ou quatro professores que ficaram encantados e desejam levar os projectos às suas escolas".Além disso os missionários pretendem "dar a conhecer o Instituto e os povos com quem trabalham". Assim a 30 de Janeiro terão uma mesa-redonda para apresentar as experiências desta interação". Para isso estarão presentes missionários que estiverem no desenvolvimento dos projectos, tanto de África como da Colômbia.Seis dezenas de missionários, missionárias e leigos da Consolata que participam nas actividades do fórum. É uma boa oportunidade para "tomar consciência de que o Reino de Deus se constrói com muitas outras experiências de vários âmbitos, de fora e de dentro da Igreja", explica António Fernandes. "Aprender com essas experiências e, quem sabe, apropriar-se de algumas delas no âmbito religioso, ecológico e social". Por outro lado o conselheiro geral da Consolata espera que os participantes "levam essa experiência para os seus grupos de trabalho". Sonha que, um dia, a proporção dos participantes se possa inverter: "um missionário acompanhado de quatro ou cinco leigos com quem trabalhamos".

Cinco quilómetros de marcha e muita chuva
A marcha de abertura do Fórum Social Mundial de 2009 paralisou o trânsito no centro histórico de Belém. A chuva torrencial, que se abateu sobre a cidade, mais pareceu uma bênção do que um estorvo

Nuvens negras toldavam o céu. "Vai chover, amigo?", perguntei ao guarda da casa onde moro estes dias, em Icoarací, antes de entrar para o autocarro que me haveria de conduzir ao cais do porto, junto ao mercado Ver-o-Peso. O indivíduo levanta o braço e olha para o relógio: "Lá para as quatro", responde num tom seguro. Os manifestantes dirigem-se aos milhares com as suas bandeiras e faixas, que dão um tom colorido e alegre à cidade. O trânsito torna-se cada vez mais difícil à medida que nos vamos aproximando do local onde terá início, às 16 horas, a marcha em direcção à Praça do Operário, em frente do Centro Rodoviário. O céu ameaça abrir-se. As colunas de som alternam cânticos com slogans. A longa coluna humana começa a mover-se e a chuva começa a cair torrencialmente durante cerca de uma hora.Bandeiras e faixas coloridas desfilam pelas ruas da cidade, mostrando lutas vivas do povo: de organizações e grupos que estarão presentes no fórum com os mais diversos meios para dar a conhecer as suas causas. Distribuem-se folhetos onde se explicam as razões e objectivos de tantas lutas e sacrifícios. Em vez de fazer esmorecer o entusiasmo, a chuva parece fazer aumentar o entusiasmo e a alegria. De vez em quando os organizadores da marcha cortam o cortejo para deixar passar o trânsito que entretanto se tornou caótico. Nas ruas que conduzem ao percurso da marcha acumula-se a polícia que de uma maneira discreta e distante, mas atenta, segue o desenrolar dos acontecimentos.Passadas cerca de duas horas, a manifestação está na Praça do Operário e começa o espectáculo. Os numerosos povos índios, do Brasil e dos países vizinhos sobem ao palco para exibirem as suas danças e fazerem as suas revindicações: "Hoje é dia de alegria, mas todos os dias são dias dos índios", clama o apresentador. O tempo torna-se curto e os grupos passam apenas a dizer o seu nome e donde são. Pouco a pouco cai a noite e os manifestantes começam a abandonar o local. Começou o Fórum Social Mundial 2009, em Belém, no Pará, Brasil.

A chuva desabou na cidade mas não esmoreceu a festa
Na abertura do evento, a festa fez-se numa "grande caminhada" pelas ruas da capital paraense. Mas ninguém arredou pé

O céu desabou sobre Belém do Pará na abertura do Fórum Social Mundial, quando os quase 100 mil participantes desfilaram pelas ruas do Cais do Porto à Praça do Operário, onde os povos indígenas dirigiram a festa final. Sob uma bandeira enorme contra o trabalho escravo, muitos ajudaram a subir o pano para abrigar todos os que procuravam proteger-se da água que caía aos magotes. Ali debaixo nascia uma confraternização informal. Outros, muitos outros, optaram por seguir caminho com a festa a acontecer à chuva – dança, cantigas, palavras de ordem, cartazes que iam da pequena reivindicação de um bairro ou de uma cidade até à quase utopia da "aldeia da paz". Partidos políticos, comissões locais, sindicatos, movimentos internacionais, organizações religiosas, representantes de povos indígenas, grupos de animação cultural ou manifestantes isolados com pedidos particulares, velhos e novos, a polícia à margem, todos cabiam no desfile, todos cabem no Fórum.Esta quarta-feira arrancam os debates e as sessões temáticas nos dois espaços nobres do Fórum – a Universidade Federal e a Universidade Rural. Mas, como se orgulham as autoridades, todo o Pará "é território do Fórum Social Mundial". A chuva há-de voltar, à tarde.

Fonte Informativa: FÁTIMA MISSIONÁRIA 28-01-2009
Informação recebida de César Salazar Pimenta (Belém do Pará - PA) e CL Maria Teresa Correia (Viseu - PT)

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