domingo, 22 de fevereiro de 2009

Porque é "TEMPO DE CARNAVAL" deixo-vos uma "Oração de Sapiência"

O "Grão Mestre" da ETNOGRAFIA

A.Lopes Pires
Responsável pela Biblioteca

"António Lopes Pires, responsável pela biblioteca e pela ASSOPS. A menos de dez quilómetros de Viseu, na pequena aldeia de Passos de Silgueiros, há quatro anos que uma biblioteca especializada em etnografia vai crescendo, ultrapassando já três mil livros, que lhe permitem "competir com as bibliotecas oficiais".

Com cerca de mil habitantes, é uma das 16 aldeias da freguesia de Silgueiros, concelho de Viseu, e "a única do País com uma biblioteca etnográfica".António Lopes Pires, presidente da Associação de Passos de Silgueiros (ASSOPS) e responsável pela biblioteca, disse à agência Lusa não conhecer "mais nenhuma em Portugal que se tenha especializado em etnografia", ciência que estuda os povos e as suas origens, as línguas, as religiões e os costumes. Inicialmente ainda pensou "numa biblioteca generalista", mas rapidamente concluiu que "a única forma de competir com as oficiais é ter o que as outras não têm: apostar numa biblioteca especializada e bem apetrechada", salientou. A aposta recaiu na etnografia e hoje, de acordo com António Lopes Pires. Silgueiros tem a que pensa ser "a melhor biblioteca da especialidade no País". Sem falsas modéstias, o antigo inspector do Ministério da Educação destaca a forma como está organizada, que "propicia aos interessados uma rápida procura".A biblioteca possui 3291 volumes da área da etnografia, recolhe material publicado na imprensa e contos, lendas, adivinhas, rezas, orações, poesia popular e medicina tradicional.

DESTAQUES

SEDE - Sediada no imponente edifício da ASSOPS, a biblioteca conta também com uma "grande recolha de todo um património imaterial".

COLECÇÃO -Além dos livros, o espólio inclui 72 dossiês temáticos e uma colecção com cerca de vinte mil fotografias.

TRAJE - A colecção do traje "é a melhor", destacando-se entre os objectos expostos um monóculo que pertenceu ao general Spínola e um binóculo do rei D. Carlos."

Fonte: Paulo Novais/Lusa
Publicada por Olga Ferreira em 2007 09:22 AM

O Museu de Silgueiros é um pequeno museu constituído pela documentação recolhida pelo Rancho Folclórico de Passos de Silgueiros ao longo da sua existência.
Trata-se de um museu etnográfico que se dedica igualmente à salvaguarda da história local, bem como de todos os aspectos do património cultural, memória de uma região e das suas gentes.
A área distribui-se por 400 metros quadrados, com várias salas de exposição permanente, temporária e de reserva.
As colecções, variadas e com mais de 20 mil peças no total, constituem um importante conjunto no contexto dos museus particulares portugueses e de grande relevo no respeitante ao folclore nacional.
Colecções principais: Traje, exterior e interior, e todos os seus complementos – óculos, lunetas, lornhões, monóculos, e respectivas caixas protectoras; luvas, sombrinhas, guarda-chuvas, lenços de mão, bolsas, botões...

TEMPO DE CARNAVAL
António Lopes Pires

Dizem alguns estudiosos que a palavra carnaval se deve à tradução da expressão latina curros navalis, os carros em forma de barcos que, primeiro na Grécia antiga, aí pelo século VI A.C. e depois em Roma, desfilavam em alegoria à Primavera. Dizem outros que deriva da expressão carne vale, que é como quem diz: adeus carne, expressão de S. Gregório Magno para definir o Domingo Gordo, o domingo anterior à Terça-Feira de Entrudo. Adeus até que o dia de Aleluia, levante das rigorosas proibições de sete semanas de jejuns, proibições, abstinências.
O Carnaval é época de grandes divertimentos que tinha – e em algumas localidades portuguesas ainda hoje tem - o seu início logo após a quadra natalícia, por assim dizer, logo a seguir ao Dia de Reis. Na região de Cinfães, por exemplo, começava em dia de S. Sebastião, o dia 20 de Janeiro. É que, na tradição portuguesa, Carnaval precisava de tempo. Tal como a Quaresma – Ana, Magana, Rabeca, Susana, Lázaro, Ramos, na Páscoa Estamos - também se desenvolvia ao longo de sete semanas: dos Amigos, das Amigas, dos Compadres, das Comadres, Magra, Gorda e de Entrudo.
Situado no início da Primavera, no momento em que se iniciam as actividades do novo ano agrícola, o Carnaval é como que uma reconstituição dos remotos ritos de passagem em que as forças do mal representadas pelo Inverno, são purificadas e expulsas pelas forças do bem representadas pela renovação vegetal que se inicia.
Estas celebrações têm raízes nas saturnais romanas acontecimentos licenciosos, de grandes comezainas e orgias que, antes da reforma cesariana do calendário romano, eram realizadas em Fevereiro ou Março, então, respectivamente, fim do ano velho e início do ano novo. Nelas se permitiam as críticas pessoais e sociais, a ponto de os escravos poderem falar abertamente de seus amos que chegavam a sentá-los e a servi-los em sua própria mesa.
No Carnaval assiste-se à sempre renovada guerra entre os sexos e à generalizada crítica social, iniciada na semana dos Amigos e terminada no Dia de Entrudo, sobretudo no enterro e morte do João, do Entrudo, dos Entrudos, do Caramono, do Galheiro ou dos Compadres segundo os costumes de cada região.
Marcado também ele hoje pelo progresso, o grande inimigo da tradição, já só em raras das nossas localidades tem ainda algumas das marcas que o caracterizaram ao longo dos tempos. E quem como nós se tem dedicado ao estudo e divulgação do possível dessas memórias, sente muita satisfação em poder trazer-vos algumas notas, breves notas do Entrudo português de um passado ainda não muito recuado.

Os grandes dias eram o Domingo Gordo e o Dia de Entrudo. A dança começava cedo. Novos e velhos estavam presentes: para dançar; para ver; para parodiar; para aplaudir. As danças de todo o ano enchiam a tarde. A Delina da Pedra e a Maria da Maça eram as principais, chamando para a roda, criticando os ausentes:

Quem seria a mascareta?
Quem seria a mascarota?
Mascareta que não dança,
Olha a mim que se me importa!
E continuavam com um sorriso maroto, ao mesmo tempo que se abraçavam alternadamente ao par da esquerda e ao da direita:

Dá-me um só beijo,
Dá-me um só dá;
Mascareta que não dança,
Olha a mim que se me dá.

O Manel da Inácia muito gostava desta dança! E o que ele sofria? Aquele afago da Delina - braço suavemente poisado em volta do seu pescoço, cabeças encostadas, faces quase se roçando ...

— Dá-me um só beijo ...

deixava-o sufocado. O raio da rapariga dançava com ele horas a fio, dava-lhe todos os entenderes, mas aceitar o seu amor, isso mais devagar. Como dizia a Helena do Pífaro:

— Trázio à corda!

De repente, a roda partia, a dança parava. Eram o Manel da Grila, o Zé Bisnau e os outros. Haviam-se aproximado sem dar nas vistas, disfarçadamente. De supetão, saltavam para elas - a enfarinhar, a enfarruscar, a enfarinhar, a enfarruscar. Gritos, algazarra, gargalhadas, alguns insultos pelo meio.
Pouco depois, tudo voltava ao normal. Do incidente, que se repetiria vezes sem conta, ficavam no ar os últimos comentários e sorrisos:

— Por esta não esperavas, ó Toino.

De verdade. Aquela Gracinda da Feira tinha força como um burro. Os seus braços castigados por horas e horas a tirar água de balde no engenho da Felgueira, aguentaram o embate mantendo o inimigo à distância.

— Botei-lhe a mão esquerda ao cachaço, dizia, saboreando as palavras, que ele nem buliu. Só esperneava.

E enquanto isso, com a direita, sacou do bolso campeiro do avental um bom punhado de cinza que enfiou ao desgraçado pela boca, pelo nariz, por onde pôde. O triste, engasgado, a espirrar, a tossir, foi-se dali acagaçado, jurando vingança.
Depois eram os máscaros. Aos pares, isoladamente ou em pequenos grupos, muito bem disfarçados, de caras e até de mãos escondidas para não serem identificados.
O Samuel Alho, às tantas, passava com a sua funçanata. Mais de vinte máscaros. Ao som de infernal orquestra, iam evoluindo de acordo com o ensaiado e as ordens do mestre, dadas através de fortes assobiadelas.
Quem também nunca faltava era o Moira trazendo em cada ano uma novidade, com aquela sua graça natural que todos conheciam e apreciavam. Em grande penico de barro, comprado especialmente para o efeito, deitou uns bons cinco quartilhos de vinho branco onde pôs a boiar grandes pedaços de chouriça. Calmamente, sem pronunciar uma palavra, rua abaixo, rua acima, ia oferecendo do petisco. Caras horrorizadas, gestos a despedir o atrevido. Ele, então, tranquilamente, limpava o bigode às costas da mão e bebia do penico, piscando maliciosamente os seus olhos miudinhos.
...
O Toino Manco não gostara nada do tratamento recebido da Gracinda. Uma destas nunca lhe acontecera. Vá que ele tinha um defeito na perna esquerda; mal de nascença a que ao tempo ninguém ligara; mas tinha força de homem e nunca fugira a brigar nem confessava medos. Porém, o raio da rapariga filara-o pelo pescoço com tais ganas que ele não teve tempo para mais nada. Depois, com a boca, o nariz e os olhos cheios de cinza, que mais podia fazer?
Saiu dali amarfanhado, mas garantindo que ela lhas havia de pagar.
Já noite entrada, passou por casa, foi à loja e pegou o panelão de barro preto de Molelos, já esbeicelado e rachado no fundo, onde deitara umas vinte dúzias de bugalhos que pacientemente havia juntado.
Panelão debaixo do braço, na calada, saiu pelo quintal do Chambelador, direito ao rio. O caminho era mais longo por ali; mas mais seguro. Pelo largo do Sanomédio havia ainda muita gente capaz de lhe descobrir as intenções e de deitar a perder todo o seu plano.
Com ligeireza atravessou as poldras saltando de pedra em pedra. O luar não era muito; mas dava para ver reflectido na água o seu sorriso de triunfador. Subiu a ladeira até à casa da Augustinha. Aí, coseu-se à parede e, pé ante pé, seguiu em frente.
No largo da Ferradora virou à esquerda. Trinta, quarenta passos adiante, lá estava a casa da Gracinda. Passou em frente para entrar pelas traseiras do cortelho, saltando o muro. Apurou o ouvido. Lá dentro conversava-se animadamente. Não dava para entender, mas não seria difícil adivinhar que falavam dos acontecimentos do dia, enquanto preparavam o caldo e as batatas da ceia.
O coração batia-lhe apressado. O panelão dos bugalhos parecia-lhe agora mais pesado. Tinha de subir os dez a doze degraus da escada que conduzia à varanda, donde, pela janela, o atiraria para o interior. Ouvia agora, claramente, a ti Laurinda:

— Queres mais caldo? Deixa ver a malga.

Iria em frente? Ou desistiria?

Afoitou-se. Subiu. Lá em cima, por uma frincha do postigo, viu passar uma réstia de luz.

— Está só encostado.

Avançou. De repente, empurrou o postigo e arremessou o panelão que, com enorme estrondo, se escaqueirou, espalhando os bugalhos por toda a casa.
Gritos, gritos e mais gritos foi o que se ouviu. Apanhadas assim de surpresa, outra coisa não puderam fazer.
Num pulo, perna fanfa a dar a dar, desceu as escadas para se pôr na alheta. Em baixo, hesitou. Por onde sair? No caminho já se ouviam vozes: da Augustinha, dos filhos e da Ferradora que, ouvindo o griteiro, acudiam pressurosos.

— Pelos quintais, pensou.

Deu meia volta e ele aí vai. Com a pressa e o escuro, junto ao poleiro das galinhas, aquele pé esquerdo fê-lo tropeçar em algo que o desequilibrou e deitou ao chão. Era um cântaro de barro que se espatifou completamente com o peso do seu corpo. Todo molhado, levantou-se e, sempre a correr, saltou o muro e desapareceu quintais adentro.
Lá longe, ofegante da corrida, mas radiante pelo sucesso da sua expedição, e vingado da vergonha da tarde, sentou-se para descansar. Estar assim todo molhado não lhe agradou; mas enfim ...

— A roupa seca depressa.

Nisto, sentindo um cheiro desagradável à sua volta, um pensamento lhe passou pela cabeça:

— Será que ...

Cheirou as mangas do casaco, o peito da camisa, as pernas das calças e torceu o nariz.
— Rai's a partam. Pois não era o cântaro das couves?
Sim, senhores. Era o cântaro onde a Gracinda, a mãe e a irmã mais nova vinham juntando, há mais de quinze dias, a urina que, depois de diluída em água, havia de adubar as couves do quintal.

NOTA: Este foi um dos Momentos Culturais da Fundação do LC Clube Viriato de Viseu 10/02/2007 - preparado a meu pedido, ao Ilustre Inspector A. Lopes Pires.

Maria Teresa Correia

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